sexta-feira, 14 de agosto de 2009

excerto do livro A inscrição na lápide

… pelo menos de Espanha já tinha saído.
Aquele espanhol de cabelo rapado e ar de camponês trouxera-o até ali e avisou-o de que um outro colega o viria buscar para levá-lo de comboio até Paris conforme o combinado.
Esperaria naquela estação (Hendaye) uns trinta minutos até ele chegar.
- E como é que ele sabe que sou eu ?
- Sabe, sabe. Já lhe dei os seus sinais e ele vem aqui ter consigo. Despediu-se muito confiante e partiu em direcção a Espanha.
Ali esteve esperando , esperando. Com receio de um desencontro nem foi à casa de banho. Aguentou assim duas horas. Começou a pensar se não teria sido abandonado pelo passador… Passaram-se três horas . Foi perguntar em castelhano, no guichet, se ainda havia comboio para Paris. A senhora francesa até o queria ajudar. Que comprasse o bilhete depressa pois era o último comboio desse dia e já estava a entrar na Gare.
E ele sem saber o que fazer . Telefonar para Portugal não podia, porque todos os telefones conhecidos estavam sob escuta. Não tinha francos nem pesetas. O dinheiro que lhe emprestaram fora todo para o passador. E mesmo assim foi dificílimo .
Resolveu esperar. A noite aproximava-se veloz.
Ainda com receio da Policia Francesa que passava de longe a longe pela Estação, resolveu subir a um monte que dali se avistava. Procurou em todos os bolsos. Só tinha 300 escudos, que a Mãe, ao despedir-se, lhe enfiara no casaco.
Precisava de os cambiar em francos.
No cimo do pequeno monte não havia habitações , mas encontrou um barraco para animais. Deitou-se às escuras num canto seco sobre as palhas. Sentia perto o cheiro dos bovinos e o ruído das suas respirações. Não conseguiu manter-se acordado por muito tempo.
Quando acordou estava gelado. Deu uma volta pelo campo semeado que a Lua permitia aperceber, surpreso de não ouvir os cães e voltou ao barraco. Os pés aqueciam a pouco e pouco. Pensava na companheira e na última vez que se viram. Onde estaria àquela hora ?
Na manhã seguinte lá foi à Estação. Cambiaram-lhe os escudos mas o bilhete que adquiriu só dava até uma cidade
antes de Tours ( de que já ouvira falar) …
Depois veria como chegar a Paris.
No comboio ficou em frente de dois portugueses que regressavam a França e que falavam do seu trabalho.

O ruído cadenciado do comboio e o sol quente que entrava pela janela fizeram-no adormecer.
Só acordou quando a porta deslizante foi aberta com força.
Era o fiscal do comboio que vinha controlar os bilhetes.
O homem pediu-lhe o bilhete e ele entregou-lho.
Perguntou espantado para onde ia ?
- Vou para Paris.
- mas este bilhete já não é válido. O senhor devia ter saído do comboio há muito tempo. -Este bilhete só é válido até …
E ele … nada. Sem dizer palavra.
Então o fiscal continuou: tem dinheiro para pagar o resto da viagem?
- não ! Não tenho mais dinheiro. O que tinha foi para comprar este bilhete. ( tudo isto em português, que foi traduzido pelos dois portugueses que ali iam)
- Então você acha que se eu fosse a Portugal podia viajar sem pagar bilhete ? Agora vou telefonar para a próxima paragem e lá você vai ter de pagar … -
O fiscal saiu, zangado, mas ficou por ali um empregado SNCF a vigiar.Daí a algum tempo o comboio parou. Era a cidade de Tours. Uma carrinha da Polícia estava lá à frente.
Vieram dois polícias buscá-lo dentro do comboio. Meteram-no na carrinha. Percorreram algumas ruas até pararem no Comissariado. O edifício enorme. Alguns polícias que se cruzavam com eles perguntavam do que se tratava …
Estabelecia-se um curto diálogo e depois riam-se …
Era motivo de conversas esse português a viajar sem bilhete e sem dinheiro.

Por fim, mandaram-no esperar numa saleta. A fotografia
na parede mostrava o General De Gaulle fardado.
Entrou um mulato à civil aparentando 40 anos.
-Sou o Comissário ( fulano de tal) –
Agora conte-me o que aconteceu.
Ele contou como tinha sido abandonado pelo passador na fronteira apesar de ter sido pago até Paris.
E a sua bagagem ? Onde ficou?
- Eu venho fugido à polícia politica, por isso …
E o que fez lá para andar fugido ?
E ele contou qual era a sua luta em Portugal, sem revelar qualquer organização clandestina. – Em Paris tenho amigos que me vão ajudar… Explicou que a esposa , grávida de sete meses , também estava presa pela Pide.
O Comissário olhou bem para ele . Deu duas voltas à secretária , em silêncio. Sentou-se e voltou a levantar-se.
Começou a falar do que lera sobre Portugal e da Pide. Do que lia em Jornais e Revistas.

Eu posso deixá-lo ir para Paris, mas tem que se fazer um relatório escrito. Quando chegar aqui um policia você vai declarar tudo o que aconteceu até chegar aqui. Sou eu que faço as perguntas e traduzo.
E saiu da sala.
Com ele regressou um polícia que vinha dactilografar as declarações. O nosso personagem ia registando toda a liberdade de que usufruíam os subordinados e toda a estrutura organizativa e humana deste comissariado e o ambiente de trabalho que ali reinava. Depois de estar feita a breve declaração, foi assinada pelo Comissário, pelo dactilógrafo, e pelo nosso personagem.
Disse-lhe : - Bom , amanhã vai seguir para Paris. Hoje janta cá e dorme na camarata.
Vou dar as ordens. E depois alguém o vem buscar.
Cumprimentou-o com um forte aperto de mão e foi-se embora. Passada uma hora veio um outro polícia que sorria abertamente :- Vais comer da nossa comida ! -
Convidaram-no a sentar-se numa mesa imensa e trouxeram-lhe um prato de guisado , cheio de coisas desconhecidas que cheiravam a novidade. ( courgetes) e outros legumes . Nem batatas, nem arroz. Comeu e gostou.
Da água é que não gostou. Mais tarde foi dormir num beliche com lençóis. Não se via nem ouvia ninguém.
De manhã acordou com a camarata cheia de polícias que vestiam as fardas falando , rindo e assobiando.
Ainda cedo comeu um croissant e bebeu café.
Perguntou como é que devia pagar tudo aquilo.
Riram-se : -está pago !
Levaram-no então na carrinha da polícia até à estação de Tours. Já na Gare os dois guardas que não eram os mesmos da véspera, foram buscar o bilhete com uma requisição e depois de carimbado pela SNCF, deram-lho.
E os dois guardas só saíram dali quando o viram entrar no comboio.

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