quinta-feira, 21 de agosto de 2014

CRÓNICAS DO PÉ DE CABRA VERMELHO

Viajei com a Eunice Macedo até Bona. Foi minha convidada (e da Rede EUR-ALPHA) para uma Conferência Europeia sobre Educação de Adultos na qual apresentou uma comunicação em nome do Instituto Paulo Freire. Conversámos sobre educação emancipadora e sobe mudança social. Vieram à baila as utopias e o PREC. Contei como então organizava as incursões nocturnas pelas ruas de Lisboa e como as famílias vindas das periferias ocupavam as casas. Do registo de memória e da sua arte de contar histórias emergiu esta pequena crónica que me enviou acompanhada de um desafio: escrevermos, a duas mãos,  as crónicas da militância de 20 anos, 1968 - 1988. Ficou o desafio...talvez um dia....

- O mais difícil era escolher a casa… - Foi assim que ele começou, o corpo reclinado no estofo, as mãos irrequietas passeando nas minhas mãos - saber quais as que estavam realmente abandonadas e as que mereciam mais ser ocupadas. Quanto maior a casa, palacetes, mansões… melhor. Cabiam mais famílias e os proprietários também constituíam inimigos mais desejáveis. Era dessa forma direta e ingénua que pensávamos nesses tempos. Se fosse hoje já não seria assim, percebemos que as coisas têm outra complexidade.
- Como é que controlavas tantas casas, numa zona tão grande?
- Muita gente colaborava. Não era eu que sabia. As pessoas vinham contar-me. Sabiam por onde eu andava. “Vem aí o gajo do Partido. Vamos lá.” – diziam. Traziam informações sobre os diferentes lugares e nós íamos. Acoitávamo-nos horas a fio pela noite dentro e ficávamos à espreita… Quando estava frio era pior. O corpo ficava gelado e, às vezes, tínhamos vontade de ir embora. Vontade de voltar para o conforto das nossas casas. Às vezes eram noites e noites seguidas até termos a certeza. Tínhamos essa missão.
- Esta é fixe. Cabem p’raí três famílias.
- Não se vê mesmo ninguém.
- Olha o correio acumulado na caixa.
- Então e o lixo ali junto ao beiral?
-  É agora.
O pé saía lançado lá de trás, com toda a força.
- Porra, esta merda não cede!
E era uma e duas e tantas vezes quanto era preciso até que ‘prás’ a porta rebentava com um enorme estrondo. Outras vezes recorríamos ao pé-de-cabra, dois pontapés, uns empurrões, metíamo-lo nos gonzos e a porta cedia. Era uma alegria – riem-se os olhos por trás dos óculos.
Outras vezes perguntava pelos cafés ou mesmo a pessoas da vizinhança.
- Você sabe quem mora ali?
- Se sei! Essa gaja é uma cabra! Nariz empinado. Não fala a ninguém. Sempre cheia das suas peneiras… Ainda no outro dia, já não sei quem lhe foi pedir não sei o quê, e ela virou-lhe as costas a resmungar. Aparece aí quando o rei faz anos. Bate a porta do carro com toda a força e lá vai ela. Não fala a ninguém.
- Era isto que eu queria ouvir. “É uma cabra!” já me chegava. Estava ali um alvo desejável. Era este o sentido de justiça. Hoje teria sido diferente. Teria ouvido outras razões. Também, eu só tinha vinte anos. Que reflexões é que eu já poderia ter? Era aquela adrenalina da luta. A vontade de fazer alguma coisa. Mudar o mundo. Arregaçar as mangas e avançar.
- Pois…
- Era uma situação complicada. Escolher as famílias… Fazíamos reuniões com os chefes de família. Saber quantos eram, de que precisavam, há quanto tempo estavam à espera. Os que tinham filhos iam primeiro. Era uma dor d’alma pensar nas crianças sem-abrigo a dormir onde calhava ou em casas sem um mínimo de condições. Depois era avisá-los quando se tinha descoberto alguma coisa. Uma noite, ficavam todos instalados. Depois os gajos chateavam-se uns com os outros. Também era tramados os ocupas. A casa tinha só uma cozinha. Uma família ficava com esse lado, as outras tinham que construir e já não queriam... com as casas de banho era igual.
- E não podiam partilhar?
- As famílias não se conheciam. Não tinham esse sentido idílico de vida comunitária. Era mesmo um desenrasca. Encontrar uma casa porque se estava a precisar. As suas razões políticas eram também muito ténues. Falar de fascismo era muitas vezes um slogan com pouco sentido. Depois diziam que era uma arbitrariedade, que não podia ser assim, que tinham tanto direito como os outros…
- E tu?
- Mandava-os calar. “Vão à merda!. Esse problema já não é comigo. Desenrasquem-se, porra. Querem dado e arregaçado?”. Virava as costas e ia-me embora. Havia muito trabalho para fazer. Encontrar novas casas. Novas famílias que me procuravam esperando a minha ajuda.
Outras vezes, depois de instalados vinha a polícia e era preciso negociar.
- Oh chefe, afinal o que é que se passa?
- É que esta casa…
- E isto e aquilo, e às vezes o pessoal tinha mesmo que sair. Viravam-se contra mim. Era outra vez que não havia justiça, que assim não valia a pena ser ocupa, que afinal o Partido os tinha atraiçoado. E eu mandava-os outra vez à merda, que não era nada comigo, e isto e aquilo. E seguia com a minha vida. Arranjamos lugar a muitas famílias. Algumas ainda hoje habitam as casas. Legalizaram a sua situação e pagam uma renda aos proprietários. Foram tempos bons aqueles – sossegam as mãos. 
Eunice, Porto

quinta-feira, 1 de maio de 2014

PARIS MANIFESTAÇÃO DO 1º DE MAIO DE 1974

OCMLP - O GRITO DO POVO










quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Procuro-te

Procuro-te no vértice da circunferência
no espelho de água
no sol rasante da tarde
e nesta lanterna intensa do poema

procuro-te para querer-te
e já antes te queria
perco-me só para perder-te
na capital do estilo
na passerele do tempo
na vacuidade do dia

perco-me porque quero
achar-te na poesia
e se de ti nada espero
procuro-te num bolero
neste pão, numa fatia

e sei que vou encontrar-te
numa ponte de Veneza
um domingo ao meio dia
Fernando Morais

quarta-feira, 14 de abril de 2010

quarta-feira, 24 de março de 2010

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A passagem

Não, não ia voltar atrás. Sabia que seriam anos longe da família e dos amigos mas não podia ir combater contra pessoas que nem conhecia e que estavam apenas a querer ser donos da sua terra, do seu chão africano. E lá ia na estrada com estes pensamentos entrecortados pela paisagem e a voz radiofónica do Rui a pontuar o tempo — Luís cuidado com a embraiagem! E a 4L paulatinamente no asfalto cumprindo a sua mecânica. Muitas horas depois chegamos a uma casa de lavradores no meio do verde e do granito. Era Março e a natureza estava à beira do cio. Jantou-se qualquer coisa no meio de recomendações e de instruções sobre a madrugada do dia seguinte. Um grande frio do tamanho do medo instalou-se pela noite dentro e, os pensamentos, cavalos bravios e incontroláveis, correram dentro dos cobertores e saltitaram nos dentes. Quase manhã, depois da bucha, na hora em que todas as cores são a mesma, partimos. Lá fora, no mundo indiferenciado e hostil, seguimos o vulto à nossa frente. Passo estugado, silencioso, de quem sabe onde pisa. Tentando ver o invisível, olhos colados na samarra, tropeçando, não distinguindo a pedra da esteva, a terra da água, o céu do serrado, lá fomos seguindo por terreno baixo, contornado pequenas elevações, serpenteando ao longo das ribeiras. — Agora silêncio — disse o homem da samarra e, apontando para uma casa, imitou a postura de um GNR. O suor frio arrefeceu um pouco mais, cantou uma coruja. Prosseguimos com redobrados cuidados e medo. Cerca de uma hora de caminho.
— É ali, só têm que subir esta encosta, Espanha é do outro lado, boa sorte. E desapareceu no lusco-fusco da madrugada. Subimos a encosta com a postura que nos tinham ensinado na tropa, quase a rastejar. Uma estrada, algumas casas, ninguém à vista. Sacudimos a roupa, ganhámos compostura e começámos a caminhar na direcção que tínhamos memorizado no mapa. Subitamente aproxima-se um vulto de bicicleta. Sobressalto até percebermos que é um trabalhador rural. Saudamo-lo no nosso melhor castelhano — Buenos dias. — Bom dia responde o ciclista e segue. Aflitos, muito aflitos, começamos rir ao fim de algum tempo. Continuamos a andar até que avistamos a 4L no sítio indicado. Dentro o Rui e o Luís com ar ensonado mas sorridente. Arrancamos para uma longa viagem.