Viajei com a Eunice Macedo até Bona. Foi minha convidada (e da Rede EUR-ALPHA) para uma Conferência Europeia sobre Educação de Adultos na qual apresentou uma comunicação em nome do Instituto Paulo Freire. Conversámos sobre educação emancipadora e sobe mudança social. Vieram à baila as utopias e o PREC. Contei como então organizava as incursões nocturnas pelas ruas de Lisboa e como as famílias vindas das periferias ocupavam as casas. Do registo de memória e da sua arte de contar histórias emergiu esta pequena crónica que me enviou acompanhada de um desafio: escrevermos, a duas mãos, as crónicas da militância de 20 anos, 1968 - 1988. Ficou o desafio...talvez um dia....
- O mais difícil era escolher a casa… - Foi assim que ele começou, o corpo reclinado no estofo, as mãos irrequietas passeando nas minhas mãos - saber quais as que estavam realmente abandonadas e as que mereciam mais ser ocupadas. Quanto maior a casa, palacetes, mansões… melhor. Cabiam mais famílias e os proprietários também constituíam inimigos mais desejáveis. Era dessa forma direta e ingénua que pensávamos nesses tempos. Se fosse hoje já não seria assim, percebemos que as coisas têm outra complexidade.
- O mais difícil era escolher a casa… - Foi assim que ele começou, o corpo reclinado no estofo, as mãos irrequietas passeando nas minhas mãos - saber quais as que estavam realmente abandonadas e as que mereciam mais ser ocupadas. Quanto maior a casa, palacetes, mansões… melhor. Cabiam mais famílias e os proprietários também constituíam inimigos mais desejáveis. Era dessa forma direta e ingénua que pensávamos nesses tempos. Se fosse hoje já não seria assim, percebemos que as coisas têm outra complexidade.
- Como é que controlavas tantas casas, numa zona tão grande?
- Muita gente colaborava. Não era eu que sabia. As pessoas vinham contar-me.
Sabiam por onde eu andava. “Vem aí o gajo do Partido. Vamos lá.” – diziam. Traziam
informações sobre os diferentes lugares e nós íamos. Acoitávamo-nos horas a fio
pela noite dentro e ficávamos à espreita… Quando estava frio era pior. O corpo
ficava gelado e, às vezes, tínhamos vontade de ir embora. Vontade de voltar
para o conforto das nossas casas. Às vezes eram noites e noites seguidas até
termos a certeza. Tínhamos essa missão.
- Esta é fixe. Cabem p’raí três famílias.
- Não se vê mesmo ninguém.
- Olha o correio acumulado na caixa.
- Então e o lixo ali junto ao beiral?
- É agora.
O pé saía lançado lá de trás, com toda a força.
- Porra, esta merda não cede!
E era uma e duas e tantas vezes quanto era preciso até que ‘prás’ a porta
rebentava com um enorme estrondo. Outras vezes recorríamos ao pé-de-cabra, dois
pontapés, uns empurrões, metíamo-lo nos gonzos e a porta cedia. Era uma alegria
– riem-se os olhos por trás dos óculos.
Outras vezes perguntava pelos cafés ou mesmo a pessoas da vizinhança.
- Você sabe quem mora ali?
- Se sei! Essa gaja é uma cabra! Nariz empinado. Não fala a ninguém.
Sempre cheia das suas peneiras… Ainda no outro dia, já não sei quem lhe foi
pedir não sei o quê, e ela virou-lhe as costas a resmungar. Aparece aí quando o
rei faz anos. Bate a porta do carro com toda a força e lá vai ela. Não fala a
ninguém.
- Era isto que eu queria ouvir. “É uma cabra!” já me chegava. Estava ali
um alvo desejável. Era este o sentido de justiça. Hoje teria sido diferente.
Teria ouvido outras razões. Também, eu só tinha vinte anos. Que reflexões é que
eu já poderia ter? Era aquela adrenalina da luta. A vontade de fazer alguma
coisa. Mudar o mundo. Arregaçar as mangas e avançar.
- Pois…
- Era uma situação complicada. Escolher as famílias… Fazíamos reuniões
com os chefes de família. Saber quantos eram, de que precisavam, há quanto
tempo estavam à espera. Os que tinham filhos iam primeiro. Era uma dor d’alma
pensar nas crianças sem-abrigo a dormir onde calhava ou em casas sem um mínimo
de condições. Depois era avisá-los quando se tinha descoberto alguma coisa. Uma
noite, ficavam todos instalados. Depois os gajos chateavam-se uns com os
outros. Também era tramados os ocupas. A casa tinha só uma cozinha. Uma família
ficava com esse lado, as outras tinham que construir e já não queriam... com as
casas de banho era igual.
- E não podiam partilhar?
- As famílias não se conheciam. Não tinham esse sentido idílico de vida
comunitária. Era mesmo um desenrasca. Encontrar uma casa porque se estava a
precisar. As suas razões políticas eram também muito ténues. Falar de fascismo
era muitas vezes um slogan com pouco sentido. Depois diziam que era uma
arbitrariedade, que não podia ser assim, que tinham tanto direito como os outros…
- E tu?
- Mandava-os calar. “Vão à merda!. Esse problema já não é comigo.
Desenrasquem-se, porra. Querem dado e arregaçado?”. Virava as costas e ia-me
embora. Havia muito trabalho para fazer. Encontrar novas casas. Novas famílias que
me procuravam esperando a minha ajuda.
Outras vezes, depois de instalados vinha a polícia e era preciso
negociar.
- Oh chefe, afinal o que é que se passa?
- É que esta casa…
- E isto e aquilo, e às vezes o pessoal tinha mesmo que sair. Viravam-se
contra mim. Era outra vez que não havia justiça, que assim não valia a pena ser
ocupa, que afinal o Partido os tinha atraiçoado. E eu mandava-os outra vez à
merda, que não era nada comigo, e isto e aquilo. E seguia com a minha vida.
Arranjamos lugar a muitas famílias. Algumas ainda hoje habitam as casas.
Legalizaram a sua situação e pagam uma renda aos proprietários. Foram tempos
bons aqueles – sossegam as mãos.
Eunice, Porto